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O HUMANO É VIÁVEL? É EDUCÁVEL?

Miguel G. Arroyo *
Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da UFMG, Doutor em Educação pela Stanford University e Doutor Honoris Causa da Universidade Federal Fluminense.

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A pedagogia nasce colada a uma crença: o humano é viável. Todo ser humano é educável. A crença política em que todo cidadão é educável mobilizou a pedagogia e a docência: a educação é direito de todo cidadão. Dever do Estado. A crença na educabilidade de todo cidadão porque ele é humano alimentou as lutas pela educação, pela escola. Alimentou o preceito constitucional: o direito à educação como direito ao Desenvolvimento Humano Pleno de todo cidadão desde a infância. Não estamos em tempos de descrença dessas crenças? Consequentemente, não estaríamos em tempos de descrença na pedagogia, na escola e na docência? Por quê?

Parto da hipótese de estarmos em tempos de descrença dessas crenças e, consequentemente, de descrença na pedagogia e na docência porque nos invade a descrença na educabilidade da infância e da adolescência pobre, negra, das periferias que chegam às escolas. Estamos em tempos de uma brutal segregação social e racial desses jovens, adolescentes e até crianças, tratando-os como violentos, delinquentes, ineducáveis, logo extermináveis, entregues à justiça penal. Inviáveis como humanos.

Que o Congresso, a mídia e 80% dos cidadãos defendam a redução da maioridade penal, defendam que o lugar de jovens, adolescentes e até crianças é na cadeia, e não na escola, é um atestado da descrença em sua educabilidade, uma descrença em sua humanidade. Um atestado de que, como humanos, são inviáveis. É um atestado de que as elites e 80% dos cidadãos não reconhecem que a escola, a pedagogia, a docência serão capazes de educar, humanizar aqueles jovens, adolescentes e crianças decretados ineducáveis, inviáveis como humanos. A defesa de que o lugar desses jovens, adolescentes e até crianças pobres, negros é na cadeia, submetidos à justiça penal, atesta a crença do fracasso das lutas políticas pela educação de todo cidadão, pelo desenvolvimento humano pleno de todo ser humano. 

A crença de que o humano é viável, educável, está em crise, pondo em crise todo o humanismo social e pedagógico que inspirou a defesa do direito de todo cidadão à educação, à humanização, porque é reconhecido humano.

Assumir que o humano é viável

Diante da criminalização moral das crianças, dos adolescentes e jovens como justificativa para sua segregação social e racial, somos obrigados a ter uma postura profissional nova: assumir que o humano é viável. Coletivos de professores-educadores(as) assumem essa postura e põem em prática estratégias múltiplas. Lembro-me de oficinas em que a base do estudo eram filmes como Central do Brasil, Vidas Secas, O Círculo, o Balão Branco, do cineasta iraniano Jafar Panahi: na véspera do ano novo, uma garota convence sua mãe a lhe dar dinheiro para comprar um peixinho dourado e, no caminho da loja, vários adultos tentam tirar vantagem de sua inocência – ela fica sem o dinheiro e sua busca se transforma numa jornada moral cheia de obstáculos. Podemos examinar rostos e corpos de crianças nas fotografias dos jornais, da Unicef, Sebastião Salgado, e captar seres acuados, de olhares interrogantes sobre o seu viver e sobre a sociedade... As artes, a literatura, continuam acreditando que o homem é viável e denunciam os processos sociais que tornam o humano inviável.

Os projetos de formação ética ficam por vezes meio desfocados ou caem na formação de condutas com viés um tanto moralizante. Outros se limitam a inculcar condutas de integração dos alunos na ordem e disciplina escolar. Mas há projetos que vinculam a formação ética com projetos de sociedade e ao menos de escola, por exemplo, de uma sociedade sem segregação e de uma escola sem reprovações, mais livre e igualitária, em que o gozo das liberdades seja real para todos. Comprometer as crianças, os adolescentes, jovens ou adultos educandos com esses projetos e ideais éticos seria uma forma eficaz de formação ética. Ao menos amarrar essa formação a um conhecimento do que há de injusto na sociedade e nas favelas, no desemprego e até do que há de injusto nas escolas. Sobretudo, amarrar a um conhecimento do que há de valores nas lutas pela justiça, igualdade, liberdades nos movimentos sociais, no movimento juvenil e na própria escola. Em todos esses processos, há valores e contravalores a serem explicitados e debatidos com os educandos, o que se constituirá em uma dinâmica formadora. Haverá lugar para esses conhecimentos nas Bases Nacionais Comuns e nas novas diretrizes da formação docente?

Um exercício bastante formador é dedicar um dia de estudo, ou uma oficina para colocar em comum o que sabemos das crianças, dos adolescentes ou jovens “com problemas de conduta”. Tentar levar a esses dias de reflexão as trajetórias humanas-desumanas desses educandos. Lembro-me de uma professora que repetia sua surpresa com um aluno adolescente: “era dos melhores alunos quando ele mesmo me contou estar envolvido na violência. A primeira vez que vi como violenta uma pessoa que tinha visto amável e bem comportada”. A maioria dos professores concordaram que vemos alunos violentos como alguém já pronto, como se tivesse nascido com essa marca. Há um estereótipo já feito e aceito. Se é pobre ou negro, logo propenso está a ser violento. É o estereótipo dominante na cultura social racista e que os noticiários da mídia perpetuam como um destino, uma herança.

A surpresa da professora diante de um aluno bom que se mostra violento trouxe uma reflexão sobre o pouco que sabemos desses processos éticos em que tantas crianças, adolescentes e jovens se debatem. Superar atitudes de surpresa diante desses tensos debates éticos vivenciados por tantas crianças-adolescentes e jovens nos obriga a repensar como vemos a formação ética do ser humano. Obriga-nos a repensar os paradigmas epistemológicos com que o pensamento moderno e a pedagogia moderna continuam pensando os outros.

A criminalização moral dos outros em nossa história e a nova criminalização social e racial repõem com radicalidade esses paradigmas epistemológicos abissais e sacrificiais dos outros (SANTOS, 2009). A criminalização moral dessas infâncias-adolescências na sociedade e nas escolas, sua segregação nas avaliações, não interrogam apenas a formação moral, ética nas escolas, mas interrogam com radicalidade a dita formação intelectual. Interrogam a segregação de milhares de educandos(as) por supostos problemas de aprendizagem e de comportamentos.

Ninguém nasce com problemas de comportamento e de aprendizagem. Estamos diante de um ser feito em complicados processos de sociabilidade e socialização. Se preocupados, como educadores(as) em conhecer esses processos, mudaremos nossos julgamentos. Nós nos sentiremos desafiados nas artes de conhecer e acompanhar as contraditórias virtudes e misérias de seres humanos expostos a esses processos de socialização desde crianças, mas também reagindo desde crianças. Nós nos sentiremos situados no cerne da eterna tensão entre o bem e o mal, o progresso e a barbárie, a humanização e a desumanização. Obrigados a entender as relações sociais, econômicas, políticas que desumanizam. Não é esse o lugar onde sempre esteve a educação?

Na literatura, narrativa, conto, novela, história foram sempre as vidas dos chamados “personagens indignos da história”, as mais ricas em matizes humanas e morais. As mais clássicas histórias infanto-juvenis estão carregadas dessas confrontações morais. Nelas, o que cativa são crianças e adolescentes defrontando-se cedo com o bem e o mal. O que as torna pedagógicas é, nesses confrontos, aparecerem referentes morais e “asideros” de identidade e liberdade.

A pedagogia conviveu sempre com esses confrontos morais em personagens infantis, adolescentes e juvenis ou adultos. O que muda agora é que esses confrontos não aparecem romanceados em narrativas históricas distantes, mas são confrontos morais e éticos em que os personagens são os próprios educandos(as) com que convivemos nas salas de aula, nas ruas, no noticiário. O que há de diferente é que até as crianças e os adolescentes são criminalizados, entregues à justiça penal ou exterminados porque são pobres e negros. A negação política da ética exposta nessas violências.

O que há de diferente agora é que nas histórias tradicionais o bem sempre triunfava, enquanto que nos confrontos dos personagens concretos, até infantis, nem sempre o mal vence. O que nos provoca uma dúvida desconcertante para a pedagogia: a formação e a perfectibilidade humana é viável? Inclusive em crianças? Se nos invade a dúvida de que o humano é viável até em crianças, o que resta à pedagogia e ao pensar e fazer educativos? As surpresas diante das condutas dos educandos em que tanto confiávamos nos colocam essa dúvida cruel: o humano é viável? Educável?

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* Texto extraído de: ARROYO, M. G. O humano é viável? É educável? Revista Pedagógica, [S. l.], v. 17, n. 35, p. 21–40, 2015. Disponível em: https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/pedagogica/article/view/3052. Acesso em: 27 jul. 2024.

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